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SociedadeEtiópia

Conflito no Tigré completa um ano sem fim à vista

Martina Schwikowski
3 de novembro de 2021

Guerra civil no norte da Etiópia tem sido marcada por brutalidade e risco cada vez maior de fome generalizada. Um novo relatório da ONU detalha que ações de combatentes constituem "crimes contra a humanidade".

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Soldados do governo Etíope que foram tomados como prisioneiros pelas forças do Tigré
Soldados do governo Etíope que foram tomados como prisioneiros pelas forças do TigréFoto: Yasuyoshi Chiba/AFP

O quadro no Tigré é chocante: não há água potável, nem eletricidade, a ajuda humanitária segue bloqueada, e há risco iminente de fome generalizada entre a população. A guerra nessa região do norte da Etiópia tem sido marcada por violentos combates entre as tropas do governo federal e forças de um grupo rebelde, bem como ataques de bombardeio da Força Aérea contra alvos na capital regional, Mekele.

Milhares de civis já morreram em consequência dos combates. Também há registro de estupros em massa e prisões arbitrárias na região. Ativistas dos direitos humanos falam em limpeza étnica.

Agora, uma investigação realizada pela ONU em cooperação com a Comissão Etíope de Direitos Humanos documentou a violência brutal – principalmente por parte das Forças Armadas da Etiópia e da sua aliada Eritreia, mas também por parte dos combatentes tigrenses.

O relatório foi divulgado nesta quarta-feira (03/11), um dia após o governo etíope declarar estado de emergência nacional depois que as forças do Tigré afirmaram ter tomado cidades estratégicas, e em meio a temores de que estavam se preparando para uma ofensiva contra a capital federal, Addis Abeba.

"Existem razões para acreditar que todas as partes em conflito na região do Tigré cometeram, em vários níveis de gravidade, violações contra o direito internacional, direito humanitário e direito internacional dos refugiados, o que pode constituir crimes de guerra ou crimes contra a humanidade", aponta o relatório da ONU.

As causas do conflito

O confronto entre os soldados do governo etíope e as forças do Tigré eclodiu em novembro de 2020.

A gênese do conflito está na animosidade entre a Frente de Libertação do Povo Tigray (TPLF) e o primeiro-ministro da Etiópia, Abiy Ahmed, que recebeu o Prêmio Nobel da Paz em 2019 por seus esforços para alcançar a reconciliação com a vizinha Eritreia.

Os soldados da TPLF consideram Abiy Ahmed um inimigo. Antes de Abiy – um membro do grupo étnico Oromo – se tornar o líder da Etiópia em 2018, a TPLF dominou a política nacional por quase 25 anos.

Abiy prometeu reformas democráticas. A Etiópia, uma federação de dez estados regionais definidos etnicamente, foi dominada por quase três décadas pelo Tigré e a TPLF, que também tinha uma posição de liderança na política e nas Forças Armadas – não apenas no norte da Etiópia, mas em todo o país – e cujo estilo de liderança era autoritário.

Em 2020, estavam previstas eleições regionais no Tigré. Abiy acabou adiando indefinidamente o pleito justificando ser necessário por causa da pandemia. Mas o governo regional, liderado pela TPLF, decidiu seguir adiante mesmo assim. Posteriormente, os resultados foram declarados inválidos pelas autoridades federais lideradas por Abiy.

As forças do Tigré reagiram. De acordo com informações de Addis Abeba, um grupo de combatentes do governo regional atacou uma base das Forças Armadas da Etiópia em 3 de novembro de 2020. No início da manhã, as tropas do governo federal responderam com uma grande ofensiva. Um estado de emergência foi imposto no Tigré, e a região foi isolada do mundo exterior.

O governo regional foi inicialmente dissolvido, mas as forças da TPLF começaram a recuperar o controle da região. Em junho, os combatentes da TPLF recapturaram a capital regional, Mekele. Na semana passada, estenderam o conflito a Dessie e Kombolcha, duas cidades estrategicamente importantes na região vizinha de Amhara, ampliando o conflito.

Em seguida, o governo de Addis Abeba declarou emergência nacional – e pediu aos residentes da capital na terça-feira que defendessem armados suas áreas residenciais, se necessário.

Mulheres e criança deitadas no chão na Etiópia
Mais de dois milhões de pessoas fugiram da região do TigréFoto: private

Resposta

O conflito gerou uma crise humanitária que, segundo estimativas da ONU, colocou 400.000 pessoas em risco de fome no Tigré. Mais de dois milhões de pessoas fugiram da região.

Mulugeta Gebregziabher nasceu no Tigré e é professor da Universidade Médica da Carolina do Sul, nos Estados Unidos. Ele fundou uma organização de ajuda que apoia a reconstrução de centros de saúde no norte da Etiópia. Gebregziabher descreve a situação como catastrófica na região.

Para ele, uma coisa é certa: o Conselho de Segurança das Nações Unidas falhou em agir para frear o conflito.

"O cerco do Tigré deve ser levantado por completo, com acesso sem restrições para os trabalhadores humanitários. O fornecimento de energia, os serviços bancários e médicos devem voltar a funcionar novamente. Todas as tropas devem se retirar das áreas de combate imediatamente", diz ele.

Gebregziabher também defende que o governo de Addis Abeba suspenda a classificação da TPLF como um grupo terrorista.

Ele ainda acredita que as sanções são um meio eficaz de interromper o fornecimento de armas para a região. De acordo com analistas, Irã, Turquia, Emirados Árabes Unidos e Rússia estão alimentando o conflito fornecendo armas e drones.

Mão adulta segura mãos de bebê na Etiópia
Fome pode vitimar mais de 400 mil pessoas. Ajuda segue bloqueadaFoto: Ben Curtis/AP Photo/picture alliance

Relatório

Havia temores do lado do Tigré sobre a objetividade do relatório de direitos humanos porque a investigação também recebeu auxílio de uma comissão de direitos humanos criada pelo governo da Etiópia.

Esses temores aumentaram depois que a Etiópia expulsou sete funcionários das Nações Unidas no mês passado, incluindo um dos investigadores do escritório de direitos humanos da ONU.

O relatório de 100 páginas, que se baseia em 269 entrevistas, encontrou evidências de "abusos e violações graves" por todas as partes no conflito e mesmo de possíveis "crimes contra a humanidade".

O documento aborda o período entre 3 de novembro de 2020, quando foi desencadeado o conflito no país, e 28 de junho, data de um cessar-fogo, que não tem sido respeitado.

Michelle Bachelet, a alta comissária da ONU para os Direitos Humanos, disse em um comunicado que o conflito tem sido "marcado por extrema brutalidade". "A gravidade e seriedade das violações e abusos que documentamos enfatizam a necessidade de responsabilizar os perpetradores de todas as partes", disse Bachelet.

Soldados etíopes, assim como soldados eritreus que lutam ao lado de forças governamentais, foram acusados ​​de estupro e violência contra mulheres.

A Anistia Internacional já havia publicado um relatório em agosto de 2021 apontando que a "gravidade e escala dos crimes sexuais cometidos" eram particularmente chocantes e correspondiam a "crimes de guerra e possíveis crimes contra a humanidade".

A ONU também já levantou preocupações várias vezes sobre as medidas do governo para impedir que a região receba ajuda humanitária. O governo etíope nega o bloqueio e afirma que já julgou soldados individualmente pelos abusos, embora não tenha fornecido quaisquer detalhes.

jps/ek (Reuters, DW, AP)