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No papel do inimigo

Agências (av)11 de março de 2008

Um bom soldado precisa de inimigos, mesmo em treinamento. O Exército norte-americano utiliza estudantes e desempregados da Alemanha em manobras na Baviera. De preferência, árabes, mas não exclusivamente.

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O 'prefeito afegão' no campo bávaro se chama Heinz Duschner:Foto: picture-alliance/dpa

Programa C.O.B. (Civilians on the Battlefield) do Exército dos EUA.
Procuramos figurantes para representação de papéis durante manobras de treinamento do Exército dos EUA.
Os figurantes representam até sete vezes por ano civis no campo de treinamento de tropas em Hohenfels.
Os participantes representam pequenos papéis de figurantes, como por exemplo o prefeito de uma aldeia que de tempos em tempos precisam negociar com comandantes do Exército dos EUA.
[...] Figurantes são necessários para criar um ambiente o mais realista possível para as tropas da Otan/KFOR.

[...] No momento procuramos em especial figurantes que falem o idioma árabe.

Não se trata de uma sátira humorística sobre a cruzada dos Estados Unidos contra o terrorismo, mas sim um anúncio real, publicado em jornais e sites de oferta de empregos da Alemanha.

As "missões" duram entre três semanas e, no máximo, seis meses. A oferta é de uma "ocupação secundária apropriada para estudantes (também de arte dramática), desempregados e beneficiários da ajuda social". Além de uma diária fixa de 92 euros, os militares prometem extras "de acordo com o grau de sucesso".

Já há sete anos as Forças Armadas estadunidenses recrutam na Alemanha figurantes para o campo de treinamento de Hohenfels, no estado da Baviera. O interesse recai sobretudo em candidatos árabes "de verdade". Os anúncios são publicados, em parte, em idioma árabe sem, nem sempre, mencionarem que o cliente são as Forças Armadas americanas. "Não queremos espantar ninguém. Todos podem se retirar na hora que quiserem", assegura o porta-voz da firma de segurança SST.

Sem paciência para jogos de guerra

De fato: alguns dos que compareceram à sessão de casting deixam o salão indignados. Antes mesmo de terminada a hora de explicações, recitadas em tom de ladainha. A locação é um hotel na cidade de Colônia, no noroeste do país. Um dos "desertores", um ator de 25 anos, reclama ao repórter do jornal Kölner Stadt-Anzeiger da perda de tempo. "Não tenho o menor 'saco' para jogos de guerra desse tipo."

Ainda assim, dos quase mil interessados, algumas centenas deixam nome e número de celular. "Não contávamos com um comparecimento tão em massa", admira-se o porta-voz da agência de segurança. Ao que tudo indica, há gente suficiente disposta a representar "o inimigo" em manobras norte-americanas.

"Não é permitido levar telefones celulares, laptops, câmeras de fotografar ou de vídeo. Não tragam suas melhores roupas, pois é capaz que fiquem sujas. Só há estradas para tanques e é como estar no deserto", adverte o funcionário ao microfone. Álcool e drogas são tabu absoluto: quem for flagrado, tem 20 minutos para arrumar as malas e deixar o campo.

Distância e pólvora seca

Soldaten bereiten sich in Klein-Afghanistan auf den Ernstfall vor
Soldados canadenses também treinam em HohenfelsFoto: picture-alliance/dpa

Desconfortos à parte, participar do programa C.O.B. (em inglês, "civis no campo de batalha") é dar um apoio importante ao Tio Sam. Antes de serem mobilizados para o Iraque ou o Afeganistão, os G.I.s precisam passar por um "treinamento intercultural". "Eles não podem simplesmente ir entrando numa mesquita, é preciso primeiro perguntar. Mas os soldados americanos não sabem isso, necessariamente", explica o porta-voz da firma de segurança. Hohenfels é a última estação antes da real thing.

Os papéis possíveis vão de vendedor de laranjas a policial ou, com sorte, até prefeito da cidade. Sempre personagens civis: representar os "bandidos" – por exemplo, a milícia talibã – é tarefa para soldados treinados, por questão de segurança. Mas dos figurantes também não se exige grande talento dramático. "Alguns terão um texto de duas linhas. Acho que todos aqui são capazes de aprender duas frases em um dia", diz o locutor da SST, e distribui um texto em inglês que qualquer colegial alemão seria capaz de entender.

Porém comunicação verbal não é tudo. Há uma série de regras de comportamento a aprender: nada de contato corporal e uma distância mínima de um metro em relação aos "ocupadores" ianques. Se houver disparos, será apenas pólvora seca ou bombas de gás lacrimogêneo. Fuzis e granadas não passam de meras imitações de plástico ou madeira.

Antes Kosovo, agora Iraque

Corte para o "teatro no pampa bávaro", como é denominada por vezes a área de 16 mil hectares em Hohenfels. Neste "palco" do C.O.B. se simulam alguns quilômetros da auto-estrada entre Bagdá e Basra.

Na década de 1990, quando os americanos se preparavam para a missão nos Bálcãs, a mesma região representava uma aldeia do Kosovo. Na realidade, Hohenfels é um pedaço dos EUA em plena Baviera, totalmente independente e isolado do mundo externo.

Apenas os contêineres de lixo e os banheiros químicos vêm de fora. Nos postos de controle da "Gate 5", um toque de Checkpoint Charlie em tempos da Guerra Fria: inspeção das malas dos carros que entram e ocasionais revistas corporais.

Torcendo por uma rebelião

As personagens secundárias desse realista drama de guerra nem sempre estão felizes. Miriam, estudante de Sociologia em Tübingen, se apóia numa desolada barraca; a amiga Judith, estudante de Etnologia e Estudos Árabes, organiza o giz sob o quadro-negro da "escolinha da aldeia".

Truppenübungsplatz in Hohenfels
Soldados norte-americanos representam os talibãsFoto: picture-alliance/dpa

"É uma coisa bem doida. E os períodos sem nada para fazer não têm fim", comenta Judith, arrumando o véu muçulmano de cabeça. Bem que foram avisadas durante o evento de apresentação: o tédio é o pior inimigo em Hohenfels.

Como se trata de assunto de segurança nacional, não podem revelar muito sobre suas atividades. Porém "a passeata em massa na semana passada foi legal", deixam escapar.

O sentimento de insatisfação também domina Kai, de 26 anos, da região de Leipzig. Há algum tempo desempregado, tinha esperanças de representar o imã da aldeia. Em vez disso, trajando um cafetã que lhe bate nos joelhos, ele agora limpa as mesas do "Café Aladin". Mas não perde a esperança de tempos mais excitantes. "Talvez aconteça uma rebeliãozinha, ou coisa assim, nos próximos dias." Haja o que houver, ele traz sempre decorado o seu curto texto em inglês. Afinal, nunca se sabe, "aqui no Iraque".