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As mil e uma noites de Frankfurt

(rr)16 de agosto de 2004

Neste ano, a Feira do Livro de Frankfurt voltou os olhos ao mundo literário árabe e convidou quase 200 autores de 17 países. O desafio é atualizar imagem difusa do Oriente e mostrar raízes culturais comuns entre países.

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Cartaz da Feira do Livro de Frankfurt de 2004Foto: Buchmesse Frankfurt

Outubro é novamente tempo de Feira do Livro em Frankfurt. Tema desta edição: a literatura do mundo árabe. Será o maior evento sobre a literatura árabe de todos os tempos, do qual participarão cerca de 200 autores em uma área de quatro mil metros quadrados – mais espaço do que já foi dedicado a qualquer outro país em edições anteriores. Um tema não apenas atual, mas até hoje único – trata-se da primeira apresentação comum dos países árabes em uma plataforma cultural e internacionalmente reconhecida. A feira ocorre de 6 a 10 de outubro.

Dos 22 membros da Liga dos Países Árabes, 17 fazem parte oficialmente da feira. Cinco nações optaram por não participar oficialmente – Marrocos, Argélia, Kuwait, Líbia e Iraque –, mas sua produção literária estará representada mesmo assim.

"Civilizar a política"

As nações árabes esperam poder contar com a feira para estabelecer conexões internacionais, especialmente no que se refere à expansão das atividades de tradução, uma vez que a literatura árabe ainda parece um tanto quanto hermética para os leitores ocidentais. Embora haja cerca de 50 traduções de romances do árabe planejadas para este ano, conforme informou o diretor da feira, Volker Neumann, ao jornal alemão Frankfurter Rundschau, ninguém sabe dizer em que pé estão as traduções para o árabe.

Assia Djebar
A escritora argelina Assia DjebarFoto: AP

Segundo o Frankfurter Rundschau, um dos objetivos centrais da feira será ajustar a imagem difusa que o Ocidente tem do Oriente, "aumentar os conhecimentos" e "diminuir os preconceitos" – "não para desviar a atenção dos conflitos políticos, mas para civilizar a política". A idéia é expandir a concepção européia sobre a literatura árabe para além das mil e uma noites. Os alemães se mostram abertos: "Temos que aproveitar qualquer oportunidade para o diálogo", disse o diretor Neumann.

Múltiplas identidades

E a política é a chave para entender a situação pela qual estão passando escritores nos diversos países representados. Exatamente por isso, espera-se que a discussão venha dar muito pano para a manga. O autor egípcio Sonallah Ibrahim, por exemplo, causou um escândalo recentemente ao recusar um prêmio oferecido pelo governo egípcio, que alega ser responsável pela opressão do povo.

Além do mais, apesar de raízes culturais comuns, a discórdia entre muitos dos países participantes é gritante. Principalmente em relação a conflitos atuais, como a guerra no Iraque e a situação palestina. "Será que um escritor alemão pensaria em uma feira de livros, enquanto Dresden estivesse sendo bombardeada?", provoca Ibrahim.

A argelina Assia Djebar exigiu que a discriminação de autores árabes seja também um tema da feira. A ganhadora do Prêmio da Paz da Associação Alemã do Comércio Livreiro lembrou que literatura árabe nem sempre é escrita em árabe, mas muitas vezes em inglês, francês ou até alemão. Ela própria escreve em francês e salienta a importância de ressaltar as múltiplas identidades árabes, a herança pós-colonial e a longa história da destruição de centros culturais árabes.

Diversas outras polêmicas são esperadas, como a situação da mulher e dos direitos humanos no Islã. Segundo Mongi Bousneina, diretor-geral da Organização Árabe para a Educação, Cultura e Ciência (Alesco), escritores deveriam usar a feira para protestar contra a "tirania e o terrorismo intelectual".

Diplomacia e açoite

A situação da literatura árabe não é das melhores. Em países como o Egito e a Mauritânia, por exemplo, o percentual de analfabetos chega a 50% ou até 60%. O mercado de cerca de 275 milhões de leitores é praticamente inexplorado e não há editoras modernas suficientes. Além disso, em muitos países, as editoras publicam apenas o que o governo quer – ou livros sobre o Islã.

Ibrahim El-Moallem, Präsident des Ägyptischen Verlegerverbandes
Ibrahim El-Moallem, espécie de patriarca da literatura árabeFoto: Frankfurter Buchmesse / Peters

Mudar isso é o objetivo do presidente da Liga Árabe de Editoras, Ibrahim al-Moallem, uma espécie de patriarca da literatura árabe, que luta pela democratização desse universo literário. "Há muitos anos, eu fui seqüestrado. Meu pai, que também era editor, chegou a ser preso. Hoje, isso não seria mais possível. Agora eu posso dizer o que eu quiser e recebo até prêmios por isso ", conta al-Moallem. "Nós somos democráticos, abertos e tolerantes. Queremos reformas, e as queremos agora".

Aos 60 anos, o editor de Alexandria não tem mais medo de impor-se perante governos. Ele conseguiu a façanha de driblar a política e hoje publica os autores mais radicais, como o ganhador do Prêmio Nobel de Literatura, Machfus, e o escritor Hamad Hassani Heikel, temido pelo governo egípcio. "A Liga dos Países Árabes representa os governos. Mas a feira quer representar a cultura, não os governos." Para al-Moallem, a feira é uma chance de mostrar não as diferenças, mas o denominador comum entre os países árabes. "Queremos mostrar que a cultura árabe é algo muito diferente do que a Al-Qaeda transmite".

Sem a mistura de diplomacia e açoite de al-Moallem, não teria sido possível estabelecer o programa da feira. Os governos teriam optado por escritores fiéis a suas linhas e a feira correria o risco de acabar tornando-se propaganda para ditadores. Ibrahim al-Moallem e sua equipe editorial, ao contrário, cuidaram para que as mais diferentes vertentes estivessem representadas. Para tanto, ele negociou longamente com a Liga, até que um consenso fosse alcançado. Até escritores de oposição, que hoje vivem na Europa, foram convidados.