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Davi Kopenawa

13 de maio de 2010

Com sábio carisma, pajé é "Dalai Lama da Floresta Tropical". Seu povo trava em Roraima batalha de vida ou morte contra garimpeiros e destruição ambiental. Deutsche Welle o entrevistou em Munique na estreia de "Amazonas".

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Davi KopenawaFoto: picture-alliance/dpa

Imagine abrir a porta e 20 estranhos lhe entrarem casa adentro, ocupando todos os cômodos, esgotando seus mantimentos, envenenando o ambiente, provocando doenças, agredindo, intimidando, deixando-o sitiado num quarto dos fundos, incapaz de sair para cuidar da própria subsistência. Por quanto tempo suportaria tal situação?

Projetado em proporções genocidas, é isso o que vem acontecendo com os índios yanomami nas últimas décadas. Segundo o antropólogo francês Bruce Albert, entre 1987 e 1990 havia no território deles, em Roraima, 40 mil garimpeiros, ou seja, cinco a seis vezes o total da população indígena. Além dos mortos em confrontos violentos, um quinto dos yanomami sucumbiu ao impacto ambiental do garimpo e às doenças do homem branco.

Durante alguns anos a invasão arrefeceu, porém a alta do metal nos mercados vem provocando uma nova corrida do ouro, e, com ela, mais saques, prostituição, conflitos, violência sexual, mais doenças, entre as quais, a aids. A presença dos homens do Exército brasileiro, ao invés de impor ordem, tem muitas vezes exacerbado a situação.

Devido a sua sabedoria e carisma suave, o pajé Davi Kopenawa é apelidado "Dalai Lama da Floresta Tropical". Ele foi o principal "parceiro contemporâneo" indígena convidado a participar da elaboração do teatro-música Amazonas, produzido pela Bienal de Munique, ZKM de Karlsruhe e Instituto Goethe, entre outros. A esperança dos envolvidos no projeto desenvolvido ao longo de quatro anos é, através das apresentações em diversas cidades da Europa e do Brasil, sensibilizar para a problemática do povo amazônico ameaçado de extinção.

A Deutsche Welle falou com o líder indígena em Munique, na presença de Bruce Albert e de Joachim Bernauer, diretor do Instituto Goethe em Lisboa. Nesta transcrição da conversa procurou-se, dentro do possível, preservar o estilo peculiar, muitas vezes poético, em que Kopenawa se expressa.

Deutsche Welle: O que achou de Amazonas – Teatro música em três partes?

Amazonas Musiktheater
Delegação yanomami no ZKM de Karlsruhe. Kopenawa é o 2º da esq. para a dir.Foto: ZKM

Davi Kopenawa: Eu achei bom. Eu lembrei o que acontece com a nossa aldeia, nas comunidades. Mas eu achei bom ser aqui. Não é só para mim, é para todo mundo que estava ali. Eu vi um Xawara [espírito da epidemia, na mitologia yanomami e personagem da obra], imitando como os brancos chegam à nossa aldeia e falam, prometem material – machado, rede, calção, panela –, para derrubar a força do índio. Mas eu achei um pouco esquisito, do jeito como os brancos vêm fazendo há muitos anos.

Achei bom que os meus filhos estão comigo aqui, o Dário e o Ênio, para eles também verem como o Xawara contamina a nossa comunidade, a nossa saúde. Eles nunca viram assim, nunca sofreram assim. É parecido com o que mostraram para nós. E prepararam a ópera para mostrar para o povo europeu. É para chamar a atenção do homem da cidade que faz mal à terra, que destrói a natureza. Então, foi bom.

Tem esperança que essa obra de teatro-música ajude a causa do seu povo?

Eu espero um pouco. Não é muito. A ópera Amazonas está fazendo o homem respeitar. Estão chamando a atenção para o homem da cidade escutar. A ópera está avisando para não continuar a destruir a natureza, para não continuar o desmatamento. Porque a Amazônia é única. É a única floresta tropical que existe no mundo. Ela não tem outro irmão, não tem para onde correr.

Nós estamos assim no perigo. Nós lutadores estamos mostrando para o homem viciado, que não pensa. Ele pensa muito diferente. Pensa noutra coisa, pensamento louco. Nós, eu não preciso tirar muita coisa. Eu preciso da terra. A terra é um ser humano. Não pode se destruir, não se pode vender, não se pode trocar. Porque não tem dinheiro que pague.

Flash-Galerie Amazonas Musiktheaterprojekt
2ª parte de 'Amazonas' é mito yanomami 'A Queda do Céu'Foto: Regine Körner

Você está vindo pela segunda vez à Alemanha. O que acha desta terra? Em que ela é diferente do Brasil, da Amazônia?

Para mim, é diferente. Para mim, não é bom. Você se acostuma a viver diferente. Para vocês, na cidade, na Alemanha, do jeito que vocês escolheram, é bom para vocês. Mas para mim, como sou liderança tradicional – que nunca vi, nunca sonhei com a cidade cheia de luz, cheia de pedra, cheia de carro –, eu acho muito triste. Porque não tem nada. Não tem nada que nasceu na terra, pássaros, animais, araras, as árvores tradicionais, não tem nada. Tudo é desmatado. Rio de Janeiro e São Paulo, ali é Brasil, mas é a mesma coisa, essa mesma doença que foi daqui para invadir o nosso Brasil. A mesma coisa de destruição.

Por que os garimpeiros estão levando tanto mal para os yanomami?

Os homens da cidade, garimpeiros, são doentes, carregam doença no corpo. E o garimpeiro não é uma pessoa rica não. Os garimpeiros que buscam ouro nas terras indígenas, eles são mandados pelos patrões, pelos empresários. Ele é uma doença que busca riqueza para os homens que compram ouro, os donos de avião – eles é que são ricos.

O homem brasileiro que compra ouro também não é rico, eles mandam para outro país, negociando, quem fica rico é a pessoa que compra, na China, nos Estados Unidos, para cá. Esse ouro não vai ficar lá: a riqueza do meu país – a sua riqueza também, você nasceu lá, a riqueza que você deixou lá.

O homem garimpeiro não tem nada, casa boa, terreno bom. Ele sempre fica sofrendo e morrendo, pegando malária, morrendo no mato. Assim que é a vida no garimpo. Para mim, garimpeiro significa bicho. Conhece porco do mato? Que fica fuçando assim, fazendo sujeira; bando de porcos que fica fazendo buraco, procurando? Eles são assim. Eu não vou dizer que eles são civilizados: eles são perdidos, não têm rumo certo, um lugar certo para viver, para trabalhar, plantar, sustentar filho. Só fazem maldade para os outros, para o meu povo indígena do Brasil.

É essa doença que foi daqui, atravessando o mar, chegou lá, primeiro na sua terra – que não é a sua terra, é a minha terra: o Rio de Janeiro é um terreno meu. Onde você nasceu, era o meu povo. Meu povo não estava preparado para se defender, não sabia falar português, não sabia reclamar.

Os indígenas pensaram que o homem é bom, dá farinha, arroz, comida, calção. É o costume dos homens para os índios ficarem calados. Eles continuam fazendo assim. Mas eu não quero que continue. Porque o governo federal, o mundo inteiro já sabe que nós temos luta e conseguimos apoio internacional para poder despejar o garimpo que estava na nossa terra.

E as erupções vulcânicas recentes, os terremotos pelo mundo afora? Há quem pense que a Terra está querendo cuspir a humanidade para fora.

[ri] Eu acredito que a Terra está brava com o homem branco. Porque o homem da cidade, ele não quer deixar em paz, não quer deixar viver, como ele viveu. O homem da cidade gosta de pensar em tirar aquilo que vale para ele. É muito grande a ganância dele. O jogo dos políticos é muito antigo. Nós, indígenas, falamos com o governo federal e também com o governo daqui da Europa, falamos da invasão da nossa terra. Mas eles não escutam porque eles precisam tirar mais mercadorias, tirar e negociar com outro país.

O governo brasileiro está lá tirando madeira, tirando ouro, tirando pedra. Ele vai negociar para cá para a Europa. Aqui também tem culpa do governo. Então os filhos de vocês têm que pressionar para eles pensarem alguma coisa.

Não é só culpa do governo brasileiro. É culpa do governo geral. Nós, lutadores, estamos sempre sacudindo a cabeça deles para eles pararem de pensar em usar a nossa terra indígena. É por isso que a Terra está brava, está zangada. Porque eles estão tirando parte dela, e ela não gosta.

Então, ela não está cuspindo, mas está dando uma mensagem para vocês acreditarem no que nós, índios, estamos falando para vocês. É lembrar que a terra não é morta: a terra é viva. A terra tem um dono, o homem que não gosta de destruir. É por isso que ela está dando uma mensagem e tem cada vez mais terremotos. E vai ter mais ainda! Então, o nosso filho vai começar a pensar, começar a lutar junto com a gente. Acho que a nossa luta é assim.

Amazonas Musiktheater Flash-Galerie
Vista da aldeia Watoriki, em RoraimaFoto: Moritz Büchner

Por que o homem branco é tão diferente do yanomami? Nós não somos todos seres humanos?

[ri] Nós somos todos seres humanos, mas o pensamento é diferente, o costume é diferente. Porque o meu povo indígena do Brasil é de lá, mas foi invadido, contaminado, levado à doença. Os políticos chegaram lá e atacaram a nossa vida com a natureza. Foi daqui, é o mesmo costume, não tem diferença não.

Será possível ensinar ao branco aquilo que ele esqueceu e que os yanomami ainda sabem? Você tem alguma esperança?

Isso aí é difícil, curar a cabeça do homem, não tem remédio que cure. Faz tempo que ele vem fazendo um estrago tão grande que é difícil tentar curar, para nós indígenas, que lutamos para defender a nossa terra, a nossa natureza.

Acho que está muito longe, muito longe de a gente se entender. Eles são viciados, eles são doentes. Nós, que queremos lutar para defender, para tentar mudar a cabeça deles, nós somos poucos. E eles são muitos: o governo europeu, dos Estados Unidos, do Japão, do Brasil, eles são aliados, eles têm poder. Para nós enfrentarmos eles, isso aí é um pouco difícil.

Então o nosso filho e o filho de vocês têm que conversar muito, falar muito, para pensar em mudar. Para frear, porque estão acelerando muito. E para eles tentarem parar de tirar mercadoria, que faz eles desmatar. Desmatamento, tirar minério, tirar petróleo, tirar gás. É muito duro mudar isso aí. Mas vamos tentar, vamos experimentar. Mais isso aí eu não vou dizer que é esperança. É muito longe ainda.

Homem branco não é forte. Homem branco é forte com dinheiro, com armas pesadas, com bomba atômica, com avião, com carro. Ele não é forte. Nós somos fracos. Nós somos assim, como tu e como eu. Então, sentimos a mesma coisa. Quem é mais forte? A terra, a pedra, exato? E nós é que temos que respeitar.

Temos que pensar como vamos parar de mexer, temos que pensar na preservação da natureza. O que vocês falam, o que vocês estão vendo, o que o mundo inteiro fala, que está preocupado com a mudança climática. Está mudando o clima, está mudando bastante, porque a poluição está crescendo e o pulmão da terra, o pulmão da floresta está adoecendo, está ferido. É por isso que está cada vez mais perigoso.

Mas tem homens como o Bruce [Albert], o Joachim [Bernauer], que são brancos também, mas estão do lado dos yanomami. Eles são diferentes dos outros brancos?

[ri] Vocês são nape [branco, em yanomami], né? Tem o nape bom, o nape que pensa, pensamento honesto, gosta da terra, gosta do lugar, beleza. Beleza é o paraíso, né? Mas os outros homens não pensam, só pensam em destruir, acabar com o que é bom. Por isso tem poucos [bons], que estão aqui. O Bruce é francês, mas ele não é "politicado". E o Joachim, ele não é político, ligado, não, ele é de longe.

E você também. Vocês estão trabalhando para ajudar a gente a divulgar, para os outros saberem o que está acontecendo. Então, eu não vou dizer que o homem branco não presta. Tem homem branco bom. Tem o yanomami, também que não presta. Não é todo mundo ruim: é metade bom, metade ruim.

Entrevista: Augusto Valente
Revisão: Roselaine Wandscheer