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Tradutor centenário

25 de fevereiro de 2010

Curt Meyer-Clason traduziu para o alemão obras cruciais de Guimarães Rosa, João Ubaldo Ribeiro, Mário de Andrade e de outras celebridades da literatura latina.

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Curt Meyer-ClasonFoto: Isolde Ohlbaum

Ele é dessas pessoas que fizeram do trabalho seu bálsamo de vida. Curt Meyer-Clason, o escritor e tradutor alemão que nasceu na cidade de Ludwigsburg em setembro de 1910, está comemorando seu centenário de vida este ano, com a discrição característica de um leitor que tem nas mãos um grande livro: em silêncio.

Ninguém passa impune por um período tão conturbado como esses cem anos que o tradutor teve que encarar: foram duas guerras mundiais em que a Alemanha se lançou ao inferno, depois foi a sede imperialista dos Estados que forjaram a consequente Guerra Fria; a destruição sistemática do meio ambiente e a constante opressão em que vive o arcaico "homem moderno". Todas as crises parecem ter imposto a Meyer-Clason a urgência de unir os cacos de um mundo tão esfacelado, e desempenhar com dedicação total seu trabalho de tradutor.

Obras fundamentais

Coube a Curt Meyer-Clason o papel de ser o pioneiro na tradução para o alemão de um universo tão rico e peculiar como o da literatura latino-americana. Ele, que atravessou de navio a linha do Equador pela primeira vez em 1936, foi descobrir novo sentido para sua vida de representante de uma empresa norte-americana que comercializava algodão nos livros que leu de autores como do brasileiro Jorge Amado, do colombiano Gabriel García Márquez e do argentino Jorge Luís Borges. Ficou tão maravilhado com o que leu que precisou de alguma forma se tornar cúmplice daquilo.

Hoje, quem se debruçar sobre a carreira desse homem que chegou a ser acusado de ter sido espião do governo nazista no Brasil vai encontrar uma profusão de títulos realmente inquestionável no aspecto qualidade literária. Além de inúmeros livros do prêmio Nobel de Literatura de 1982, García Marquez, como Cem Anos de Solidão, Crônica de uma Morte Anunciada e O Outono do Patriarca, Meyer-Clason traduziu também Viva o Povo Brasileiro, de João Ubaldo Ribeiro, Macunaíma, de Mário de Andrade, e Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto, passando ainda por A Hora da Estrela de Clarice Lispector, Migo de Darcy Ribeiro e Zero, de Ignácio de Loyola Brandão.

Atitude política

"mpressiona-me a atividade que Meyer-Clason desempenhou na divulgação de autores brasileiros, latino-americanos, portugueses e espanhóis numa época em que isso era também uma atividade altamente política, um ato de combate contra as ditaduras nesses países. Quem já leu os Portugiesische Tagebücher (Diários Portugueses, de 1979) em que o próprio Meyer-Clason fala sobre o seu trabalho como diretor do Instituto Goethe em Lisboa antes de 1974, ganha uma boa impressão de como fazer cultura e literatura naquela época eram inevitavelmente também atos políticos", afirma Michael Kegler, tradutor alemão do prestigiado angolano José Eduardo Agualusa, do português Gonçalo M. Tavares e do brasileiro Fernando Molica.

Dentre as traduções do colega, Michael Kegler destaca suas preferidas: "A tradução do Poema Sujo, de Ferreira Gullar seria uma que me impressionou. Da parte portuguesa, a obra de Miguel Torga, ou A vaga de calor, de Urbano Tavares Rodrigues. Ah, e quem fez a voz do García Márquez na Alemanha, de João Ubaldo Ribeiro, ou do Jorge Amado? Tudo isso eu li numa época em que eu nem me apercebia que atrás dos textos havia um tradutor – o que é sempre um bom sinal".

Prisão no Brasil

Foi no cárcere da Ilha Grande, Rio de Janeiro, que Curt Meyer-Clason descobriu seu amor pela literatura, ao ser preso em 1942 pela polícia de Getúlio Vargas. Contra ele pesava a acusação de ter trabalhado como espião para o regime fascista. "São puras calúnias. Quem quiser saber dos fatos pode ler meu romance autobiográfico Equador, que está lá tudo contado, frase por frase", declarou ele ao repórter. "Fui forçado depois de tortura a assinar documento sem ler, um depoimento escrito pela polícia com a intenção de me condenar", contou o alemão. O tradutor viveu no Brasil de dezembro de 1936 a maio de 1954.

Atrás das grades, o encontro que se deu com a literatura brasileira foi definitivo para ele, que se lançaria às primeiras traduções na década de 60. Ele acabaria se tornando amigo de muitos escritores, principalmente de Guimarães Rosa, a quem descreveu como "versado". "Ele conhecia também a literatura alemã contemporânea, mas conversas literárias não eram de seu feitio", revelou Meyer-Clason em Die Menschen sterben nicht, sie werden verzaubert (As pessoas não morrem, ficam encantadas), livro publicado em 1990. "João Guimarães Rosa era um realista, mas também um místico; para ele, [misticismo e realismo] eram faces de uma mesma moeda."

Já no começo do relacionamento, Guimarães Rosa não poupava admiração pelo tradutor alemão. "Confio plenamente na sua inteligência, na sua cultura, no seu encantamento pelo amor e sua notória capacidade. Estou certo que não me iludo, quando acho que a tradução alemã, com sua exatidão e adequação, será a mãe de todas as traduções."

Amor pelas letras

O livro Die Menschen sterben nicht, sie werden verzaubert reúne relatos de diversos encontros que o tradutor teve no decorrer dos anos com os ilustres Jorge Luís Borges, Jorge Amado, Vargas Llosa, Ubaldo Ribeiro, Cabral de Melo Neto, García Márquez e Carlos Drummond de Andrade.

O poeta de Sentimento do Mundo lhe era especial: "Sua voz reservada, sussurrada, me lembrava Ingeborg Bachmann [escritora austríaca] em suas leituras". Depois de ouvir de Drummond que ele não tinha o menor interesse em entrar para a Academia Brasileira de Letras (ABL), Meyer-Clason o descreveu: "por não ser agressivo, recusar prêmios era sua forma de protestar."

Em 1965, a ABL homenageou Meyer-Clason com a medalha de ouro Machado de Assis, como reconhecimento pela tradução de Grande Sertão: Veredas. Para o autodidata Curt Meyer-Clason, o segredo da tradução é fazer das cores da estranheza algo reconhecível.

As inúmeras cartas que Meyer-Clason e Guimarães Rosa trocaram entre 1958 e 67 foram publicadas em 2004. "Foi de meu encontro com João Guimarães Rosa e sua obra que nasceu minha aventura de tradutor", afirmou o nobre cidadão de Munique.

Autor: Felipe Tadeu

Revisão: Carlos Albuquerque

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