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Violência racista?

7 de setembro de 2011

Durante o regime Kadafi, as fronteiras da Líbia estiveram abertas para trabalhadores de países africanos vizinhos. Agora, negros são presos pelos rebeldes, acusados de luta armada ao lado do ditador.

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População negra é mais visadaFoto: DW

"Eles prenderam meus dois irmãos ontem à noite e os levaram presos. Somos negros, este é o nosso único crime", relatou à Deutsche Welle o morador de Trípoli Zeinab Muhamed.

À primeira vista, o clima mudou dramaticamente no antigo clube esportivo da capital líbia, em frente ao porto principal. No antigo local de encontro de proprietários de iates e de veleiros, encontram-se hoje prisioneiros e seus familiares que esperam do lado de fora. Todos são negros residentes no bairro antigo de Trípoli, Medina.

"Nenhum deles é líbio. Esses caras que prendemos aí dentro são todos estrangeiros pagos por Kadafi para matar os nossos. O que querem que a gente faça com eles? Eles são mercenários." Assim explica Abdulhamid Abdulhaki, funcionário do conselho local de rebeldes, falando à Deutsche Welle, através do portão principal.

Aparentemente, a visita de jornalistas vindos do exterior à prisão improvisada o deixou nervoso. "Vocês sabiam que Kadafi nunca deixaria jornalistas trabalhar como vocês estão trabalhando? Essa não é a prova real da democracia na nova Líbia?", argumenta.

Mão de obra barata

Libyen Tripolis Gewalt gegen Schwarze
Presídio improvisado em TrípoliFoto: DW

Zeinab Muhamed rebate: "Eles dizem que não somos líbios, mas não é verdade. Nasci em Chade, mas nos mudamos para Sebah [900 quilômetros ao sul da capital] 20 anos atrás. Temos passaportes líbios praticamente desde o dia em que nos mudamos".

Salwa Eisa, de 36 anos, moradora na cidade velha, também faz fila à entrada, carregando uma bolsa com comida para seu esposo. "Chegamos do Chade dois anos atrás, e Abdullah, meu marido, fez todo tipo de trabalho, menos aceitar dinheiro de Kadafi para matar gente." Ela é da mesma opinião que os demais familiares reunidos do lado de fora do clube transformado em presídio: "Nosso principal problema é a cor da pele".

Durante suas quatro décadas no poder, o ditador líbio Muammar Kadafi abriu as fronteiras do país para os imigrantes dos países vizinhos à procura de melhores condições de vida. Uma decisão compreensível, considerando-se que a população de cerca de 6 milhões é mínima, em relação às proporções do país norte-africano e suas gigantescas reservas de petróleo. A maior parte desses imigrantes foi empregada como mão de obra barata.

Provas suficientes?

Na entrada da prisão improvisada, guardas e parentes limpam os pés em um capacho com o retrato de Kadafi. A poucos metros, dezenas de homens negros estão sentados na sombra.

"Eu vim de Gana no ano passado porque meu irmão me disse que era fácil encontrar trabalho como limpador de rua. Parece que todo mundo que faz esse trabalho aqui é preto. Eu juro que nunca peguei numa arma neste país", assegurou o prisioneiro à Deutsche Welle, pouco antes de o repórter ser impedido de continuar conversando com os detidos.

"Eles não estão presos. Nós os estamos mantendo aqui até terminarmos a investigação. Os que não estiveram envolvidos em violência vão ser liberados imediatamente, mas os culpados serão transferidos para Jdeida [principal presídio de Trípoli]." A declaração é de Ali Mohamed, de 22 anos, que alega ser o "inspetor-chefe" do Conselho Nacional de Transição (CNT), liderado por rebeldes.

Segundo as autoridades locais, existem numerosas provas de que os detidos participaram de atos de violência: armas encontradas em suas residências, ferimentos de combate, fotos de celulares que os mostram empunhando armas ou o fato de se encontrarem entre os seguidores de Kadafi.

"Caçada humana"

"Todo mundo se conhece neste bairro", esclarece um guarda. Um outro acrescenta que os antigos prisioneiros sofriam "as torturas mais cruéis durante o regime de Kadafi", enquanto hoje em dia eles são "bem alimentados" e os policiais rebeldes de Trípoli "nem encostam a mão neles".

Libyen Tripolis Gewalt gegen Schwarze
Muitos dos detidos vivem na Líbia há anosFoto: DW

Haveria 50 detidos no clube transformado em casa de detenção. "Não posso lhe dar o número exato das pessoas que prendemos durante os últimos dias, mas acho que seriam umas 5 mil, na cidade inteira", anunciou o porta-voz do Conselho Militar de Trípoli numa coletiva de imprensa realizada na semana passada.

Repórteres internacionais residentes em Trípoli estão descrevendo como "caçada humana" o que está acontecendo na capital e arredores. Na semana passada, a Deutsche Welle testemunhou a prisão de pelo menos 30 cidadãos negros no bairro antigo de Trípoli. Os rebeldes estavam organizados em grupos de dez, bloqueando a entrada das ruelas e levando embora os detidos a pé.

Diversos moradores locais revelaram à DW terem cada vez mais medo, muitos planejam ou retornar a seus países natais ou emigrar para a Europa.

ONGs apelam

Mohamed el Gadi, da ONG local Juntos pelo País, alega que parte das notícias tem sido exagerada. "Visitamos numerosos centros de detenção nos últimos cinco dias e não encontramos nenhum preso sendo maltratado." Entretanto, outras ONGs mais estabelecidas chegaram a conclusões diferentes.

Num relatório divulgado no domingo, a Human Rights Watch (HRW) apelou ao CNT para que suste "as detenções arbitrárias e os abusos contra trabalhadores imigrantes africanos e contra líbios de cor negra acusados como mercenários". A organização humanitária sediada em Nova York aponta que tais atos vêm espalhando medo entre a população africana da capital. "Atualmente é perigoso ter pele escura em Trípoli", observa Sarah Leah Whitson, diretora do departamento encarregado do Oriente Médio e África do Norte da HRW.

A Anistia Internacional (AI) igualmente denunciou diversos episódios de violência indiscriminada contra cidadãos de cor negra, inclusive o espancamento de pacientes em hospitais por rebeldes armados. "Tememos o que possa estar acontecendo com os detidos longe das vistas dos observadores independentes", comentou o secretário-geral da AI, Claudio Cordone.

De volta a Medina, o muezim chama para as preces vespertinas. À noite, os homens se entrincheiram em casa e apenas gangues de adolescentes vagam pelas ruas estreitas e sujas.

Autor: Karlos Zurutuza (av)
Revisão: Roselaine Wandscheer