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Um certo Oriente brasileiro

Soraia Vilela

A Feira do Livro trouxe a Frankfurt um dos "pés literários” brasileiros no Oriente: o escritor Milton Hatoum.

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Hatoum em Frankfurt: relato de um hibridismo cultural amazonenseFoto: Suhrkamp Verlag

O nomadismo dos antepassados do escritor amazonense Milton Hatoum, de alguns de seus personagens e de sua própria história, marcada por mudanças geográficas, reflete também em suas atividades. Hatoum, ex-professor universitário, concluiu a tradução para o português de Três Contos, de Flaubert, publicada pela editora Cosac & Naify. E está ao mesmo tempo finalizando – "estou há um ano concluindo esse romance" (risos) – seu próximo livro, que deve ser lançado em abril de 2005.

O título provisório, Vila Amazônia, explicita o paradoxo entre o microcosmo de uma aldeia e a imensidão amazônica, cenário recorrente na obra do escritor. Uma Amazônia adornada pela língua, pelos costumes, pela culinária e pelas pequenas tragédias cotidianas do universo de imigrantes orientais: libaneses, sírios e judeus do norte do Marrocos. Um hibridismo na ficção que tem também seus pares na vida real: "A tradução de Flaubert fiz com o paulista Samuel Titan Jr., neto de um judeu marroquino que viveu no Pará", conta Hatoum.

Sem fronteiras rígidas nem classificação de etnias

Zwei Brüder
Capa do livro 'Dois Irmãos', de Hatoum, traduzido para o alemão

O escritor coloca em sua obra o universo cultural brasileiro, "que não conhece fronteiras rígidas nem classificação de etnias", observa. Retratos de um Brasil plural, cujas "origens se diluem para formar uma outra coisa". E é essa "outra coisa" que ocupa o centro da obra de Hatoum, essa "alguma coisa que é diferente, que surge depois da imigração". Talvez seja exatamente a existência desse Outro, tecido como uma colcha de retalhos cultural, que concede à literatura de Milton Hatoum o título de "universal". Uma classificação comprovada pelas traduções de Relato de um certo Oriente (1989) para seis idiomas, com publicações em oito países diferentes. E de Dois Irmãos (2000) para oito línguas, com publicações em dez países.

Manaus, "cidade ilhada e talvez perdida", como define Hatoum no ensaio Reflexão sobre uma viagem sem fim, foi até agora cenário de sua obra. Uma Manaus reconstruída (ou reiventada) através de fragmentos de memória, recolhidos in loco e permeados por elementos da cultura árabe. Mas também coletados em outros cantos do mundo. A cidade como metáfora do universo latino-americano, constituído por pedaços de identidades as mais diversas.

"Tambaqui com molho de taratur"

A construção narrativa dos livros de Hatoum expressa a fluidez entre duas culturas – árabe e brasileira. O que não equivale à dualidade oriental-ocidental, pois "o Brasil não é uma sociedade branca ocidental. Longe disso", comenta o autor. E nesse cenário de identidades semidiluídas que compõem o país, Hatoum mostra a mistura de idiomas (além do português e do árabe, interferências do francês e do espanhol), de ritos, desejos, conflitos e até culinárias: um "tambaqui com molho de taratur", cita Hatoum.

A face tambaqui (peixe típico da região): a herança indígena na cidade; a presença da floresta que, em Dois Irmãos, é destruída em ritmo paralelo à deterioração das relações entre as personagens; a escravatura submersa na "ausência de escolhas" da flaubertiana Domingas, em Dois Irmãos (uma referência à criada Félicité, retratada pelo escritor francês em 1877). E esse tambaqui é levado ao forno com iguarias orientais. A face taratur (molho árabe à base de óleo de gergelim): a tradição oral das histórias que passam de geração a geração, as vozes múltiplas dos comerciantes árabes e judeus marroquinos ecoando pelas ruas de Manaus, a estrutura gregária das famílias, as fronteiras fluidas entre os espaços público e privado.

Rede na casa libanesa: espaço simbólico

O relato desse certo Oriente amazonense "lembra um pouco a estrutura das histórias que puxam as histórias de As Mil e Uma Noites", diz Hatoum. Uma forma de resgatar, do outro lado do mundo e no meio da selva amazônica, elementos da tradição oral de um Oriente geograficamente longínquo, mas culturalmente próximo. Um Oriente cujo palco das tragédias cotidianas em Dois Irmãos é curiosamente a rede, essa criação indígena, postada no alpendre da casa da família de imigrantes libaneses.

A rede, que segundo a definição de um dicionário é "um entrelaçamento de fios, cordas, cordéias e arames, com aberturas regulares, fixadas por malhas, formando uma espécie de tecido". E é uma espécie de tecido intrincado o que Milton Hatoum tentou explicar neste domingo (10/10) a alemães, árabes, brasileiros ou quaisquer interessados, presentes na palestra "Oriente no Ocidente – Imigrantes Libaneses na América Latina", durante a Feira do Livro de Frankfurt.

Contar ao mundo as peculiaridades desse certo Oriente amazonense é com certeza uma tarefa não muito fácil. Pois esse "passeio pelas origens" pode ser, como observou certa vez Hatoum ao relatar um encontro com Raduan Nassar no fim dos anos 80, "uma conversa meio truncada, pois as origens são sempre uma busca, uma interrogação, um mito pessoal". E talvez algo bem mais que isso.

Clique no link abaixo para ler a íntegra da entrevista com Milton Hatoum.